A PERDA

Ela cantarolava lavando a louça da noite anterior, olhando pela janela e pensando que logo deveria começar a faxina de seus três cômodos. Da janela ela podia ver o mar ao longe, morro abaixo, tão perto, mas tão longe para ela, pois nenhuma mulher nunca havia tocado aquelas águas. O lugar das mulheres era a terra, os homens dominavam as águas.

De longe ela ouvia os homens trabalhando nos barcos e jangadas,ao longe algumas crianças brincavam, as areias apinhadas de gente querendo comprar o almoço mais barato.

A calmaria da rotina foi interrompida com um dos homens irrompendo pela porta, gritando seu nome. Sua expressão de horror já dizia tudo o que ela precisava saber. Seu filho! Ainda com as mãos sujas de sabão e o avental amarrado na cintura, ela correu com ele morro abaixo, não se importando quando um de seus chinelos ficou pelo caminho. Onde estava seu filho foi o que ninguém conseguiu lhe responder, enquanto ela corria de jangada em jangada, esbarrando em conhecidos e desconhecidos.

Ao final da faixa de areia, a água batia com força nas pedras quando ela se ajoelhou olhando sem expressão para o mar. O mar o havia engolido. O seu menino. Uma pequena multidão se unia a ela, observando-a. Alguns murmurando orações para que os deuses do mar levassem o menino em segurança; a maioria em silêncio, já tendo vivido eles mesmos o que ela sentia agora.

Mas todos deram um passo para trás quando ela levantou de um salto e correu em direção ao mar. Nem ao menos olhou para os lados quando quatro homens tiveram que segurá-la, a água salgada tocando seus pés pela primeira vez. O mar é dos homens, ela sabia, já não havia mais o que fazer. Ela sabia enquanto era levada de volta para casa, ainda se debatendo. E sabia quando foi colocada na cama, no quarto que agora era só dela, e deixada no silêncio de sua pequena casa.

Ela acordou no dia seguinte com o som das mulheres na cozinha e o cheiro de algo quente sendo preparado. Se enrolou na coberta fina, passou por elas e saiu para o dia que raiava. Para onde olhasse a água tomava conta, seu morro havia sido sua vida, a vida de seus pais e dos pais deles antes. Era tudo que ela conhecia. Ainda assim olhava ao longe, pensando se havia algo além daquela imensidão azul que refletia o céu, quantas outras ilhas como aquela que eram a vida de mais tantas outras pessoas. E quantas outras mulheres como ela, que havia perdido marido e filhos para as águas.

Lembrou-se de quando era criança e sua mãe costumava lhe contar histórias sobre deuses que reinavam sobre os oceanos; os agradeciam quando o mar estava calmo e assim conseguiam seu sustento, e suplicavam quando ele estava revolto. Era nas águas que enterravam seus mortos e das águas das barrigas das mães que nasciam.

Sua mãe lhe contava que a única água que poderia tocar é aquela que transborda de você quando nasce um filho. Quando seu próprio filho havia nascido, ela lembrou da mãe e soube que tudo que haviam lhe contado era verdade: do mar vinhamos, para o mar iríamos. Era ele que dava e ele que tirava, tanto o sustento quanto a própria vida… De repente ela se endireitou na cadeirinha de madeira baixa e desgastada na qual estava sentada. Agora ela tinha a resposta do que deveria fazer, na verdade, sempre tivera a resposta; nas lendas estava tudo que ela precisava para ter seu filho novamente.

Entrou em casa quase correndo, mais uma vez passando pelas mulheres, e foi para o quarto se trocar. Não tinha muito o que levar fora a roupa do corpo e toda determinação que pôde encontrar no momento. Saiu sem se despedir, sem comer a sopa quente e certamente reconfortante que estava no fogão, e desceu o morro até a orla.

A praia estava quase deserta agora que os homens haviam voltado para o mar, apenas uma canoa amarrada a um tronco caído balançava suavemente junto às ondas. Contrariando todas as tradições, olhou em volta para checar se ninguém observava e em um pulo entrou no barquinho. Desamarrou a corda que o prendia e lançou-se ao oceano em busca dos deuses para negociar a vida do filho.

Não sabia como nem para onde iria, quem ou o que encontraria, ou se encontraria. Mas se os deuses davam e eles tiravam, eles também podiam trazer de volta.

TRAVESSIA

Conforme ia se afastando da praia, ouviu um grito de mulher chamando outros para trazê-la de volta à costa, clamando que os deuses a castigariam e a todos da ilha por ousar colocar seus pés nas águas. Mas não havia cometido nenhum pecado certo? Se questionava, repetindo para si mesma que havia pulado da areia para a jangada, sem encostar na água que agora ondulava para longe.

Os homens, ao invés de correrem ao seu encontro e a arrastarem de volta, simplesmente consolavam suas mulheres, pois ela que “navegava” já estava longe de conseguir ser salva agora. Não havia algo para o qual voltar e talvez nada ao qual encontrar; ainda assim virou-se de costas para a praia já minúscula no horizonte e sentou-se na jangada, esperando que algo aparecesse para o qual se direcionar.

Em sua pressa de “fugir” esqueceu-se que precisaria comer em algum momento, e que se durante a noite a brisa soprava fria em sua casa, em alto mar seria ainda pior. Olhando em volta, a única coisa que via era o azul esverdeado daquelas águas imensas e desconhecidas. Nem sinal de alimento ou abrigo.

Não via algo para o qual pudesse voltar, ao mesmo tempo talvez nada a encontrar. Ainda assim, deu as costas para o seu morro e olhou para o infinito à sua frente. Sentou-se na jangada esperando que algo acontecesse, uma boca gigante surgisse do fundo do mar para abocanhá-la ali mesmo, talvez. Mas seu barco continuou o caminho como se os deuses tivessem se esquecido dela, a única mulher naquelas águas. Por fim, deitou-se na jangada e deixou os ventos uivantes da noite a açoitarem e o sol em brasa do dia a envolver. Ela olhava para as estrelas tentando aprender a se localizar, mas ninguém nunca havia se dado ao trabalho de tentar ensiná-la .

Já tendo perdido a conta de quantas vezes vira o dia mudar de forma, com o sol a nascer, se pôr e nascer novamente; se questionava se realmente haveria outras ilhas como a dela… Deveria haver, certo? Mas… E se não houvesse?

A certeza da morte a acertou em cheio no peito queimado e seu estômago de dias sem comer se embrulhou. Apoiou-se na borda da jangada e olhou para as águas, como se olhasse para um rosto de feições totalmente estranhas a ela. Será que o corpo de seu filho estaria no fundo daquele mar, deitado em uma cama de areia e envolto pelas algas que apareciam na praia?

Sentiu que precisaria reunir suas últimas forças para se colocar em pé na beira de seu barquinho, pronta para se lançar ao mesmo destino do filho. Porém uma onda invadiu o barco a acertando em cheio e jogando-a para trás. Um aviso… talvez? Seriam as águas encorajando-a a não desistir?

Sua mãe costumava dizer que o mar ajuda os desesperados, mas será que apenas os homens?

Enquanto enxugava, com o dorso da mão, a água salgada que havia respingado em seu rosto, viu flutuar ao seu encontro um objeto marrom que não conseguiu identificar prontamente. Uma inscrição em vermelho foi se tornando visível. A tinta vermelha desbotada fazia o contorno no objeto que agora ela reconhecia como o vaso usado pelos seus para oferendas aos deuses

Seu rosto imediatamente se iluminou com a possibilidade de estar próxima da fonte daquele vasinho. Mas em sua empolgação acabou pisando em falso, se desequilibrou e foi engolida pela escuridão marítima, inicialmente tentando buscar pelo ar que faltava em seus pulmões, mas por fim deixando-se levar pelas águas.

DEUS POLVO

Acordou deitada em algo úmido e pegajoso, surpreendendo-se por ainda estar viva. Ouvia o bater das ondas em volta de si e sentia que ainda estava em movimento de alguma forma. Talvez não tenha caído da jangada afinal… Mas um som gutural que parecia vir das profundezas da terra se fez ouvir tão próximo que seus cabelos se arrepiaram e todo seu corpo se estremeceu.

Levantou-se de um salto para se ver frente a frente com um rosto humano, o mesmo que havia imaginado ao encarar as águas escuras. O rosto se mexeu e ela ouviu, como se o som estivesse reverberando dentro de sua mente, enquanto em volta de si as ondas produziam o único ruído que se podia ouvir em quilômetros.

A voz lhe disse seu nome, disse que era ela quem produzia as ondas que permitiam a navegação e que engoliam os marinheiros mais descuidados. O rosto se mexia por inteiro, uniforme, com olhos vazios sem órbitas e uma boca sem dentes e sem língua.

Perguntou-lhe quem era e o que vinha pedir em oração. Equilibrando-se com dificuldade no que agora ela percebia ser um tentáculo da criatura com quem conversava; respondeu que vinha buscar seu filho, vinha pedir aos deuses que trouxessem seu menino de volta, mesmo sem saber como achá-los.

A risada que ecoou dentro de si fez com que instintiva, mas inutilmente, tapasse os ouvidos com as mãos. TOLA, chamou a criatura, como poderia achar seu filho quando nem ao mesmo sabia reconhecer quando estava diante de um deus.

Seus olhos se arregalaram e ela imediatamente se colocou de joelhos, fazendo preces em voz baixa, pedindo perdões murmurados por ter ofendido um dos grandes deuses. Temeu levantar os olhos novamente para aquele rosto quase humano que via em meio ao corpo úmido, será que ficaria satisfeito com as orações de uma mulher? Alguém que havia desafiado as águas como ela havia feito?

A consciência de sua transgressão a atingiu com força no peito e ela começou a esperar pelo castigo que certamente viria, que ele a sufocasse com seus tentáculos e a arrastasse para o fundo do mar. Mas ao invés disso, ele apenas a “olhava” com interesse. O que estaria disposta a fazer por ele, foi o que questionou, por fim, o que estaria disposta a fazer para ter seu filho de volta?

Em um segundo sua mente se preencheu de possibilidades, tudo que sua limitação conseguia conceber. Tudo. Tudo e qualquer coisa que ele lhe pedisse. Pensou ter visto um vislumbre de sorriso passar por aquela boca sem lábios, um brilho por aqueles olhos sem órbitas.

Foi então que o deus-polvo lhe contou sobre seus poderes, sobre como há muito tempo os deuses, loucos por poder, guerrearam entre si, buscando a referência do mundo, desejando toda a adoração, todas as oferendas e todo controle para si.

O sangue derramado havia se misturado à água, as cinzas de seus corpos queimados à terra das ilhas. Por fim havia restado apenas quatro deles, que se escondiam uns dos outros em seus templos, mesmo havendo um acordo de paz. Ele, o deus-polvo, fora outrora o mais poderoso deles, tendo o poder sobre o tempo e com ele o poder sobre as marés e sobre a vida. Porém outras divindades, invejando a extensão de sua importância, desejando preces e adoração, arrancaram dele seus poderes, relegando-o ao fundo do mar, apenas espreitando, enquanto as vidas se desenrolavam ao seu redor e na superfície.

Ela ouvia a história com os olhos marejados de quem entende a perda, algo havia sido tirado dele, assim como dela. Naquele instante ela soube que também faria tudo por ele, que sua jornada poderia também ajudar outro, talvez.

Em sua mente ouvia o deus-polvo lhe dando o caminho, as instruções para ajudá-la a ajudá-lo, e vice versa. Da guerra havia sobrado quatro deuses que se escondiam pelo mundo com fragmentos de seus poderes, garantindo que ele não pudesse ser grandioso novamente. Entendeu que precisaria pegar com as próprias mãos o poder que vivia dentro daqueles outros deuses, que lhes dava essência e sustento. Entendeu que precisaria matá-los. Vidas por uma vida, ouviu ressoar nos confins profundos de sua mente.

O rosto do deus polvo olhava para ela, ansiando, sua pele brilhando, cheirando a sal e mangue, o cheiro acre do que havia ficado na água salobra por tempo demais. Havia algo de vulnerável naquele olhar, quem mais, o que mais ele poderia ter perdido em todos aqueles anos? Estava certo, estava dado o preço por seu menino. Ela sabia que, ao concordar, não precisaria dizer mais nada, ele saberia, de alguma forma divina, ouvia o que se passava dentro dela e sentia que ele compartilhava da mesma dor.

Sua jangada estava milagrosamente inteira, parada próxima a um dos tentáculos, ondulando de leve junto às ondas satisfeitas que eu ele criava. Desceu até onde ela se encontrava e pulou ainda tentando não encostar na água. Virou-se para trás a fim de pedir um último auxílio, mas ele havia submergido, deixando a sensação de sonho e desesperança.

DA IGNORÂNCIA DOS HOMENS

Mais uma vez se viu cara a cara com o desconhecido daquelas águas. Mesmo recebendo instruções, refletiu sobre o quanto elas seriam realmente eficientes para que chegasse a algum lugar. Olhou para os pássaros acima e pensou que por mais que se alimentassem do mar, deveriam fazer seus ninhos e cuidar de seus filhotes em terra…Se os seguisse, talvez chegasse a algum lugar. Usando um pedaço de madeira que se soltara de seu próprio barquinho como remo, tentou seguir a direção das gaivotas. Era muito mais difícil do que havia antecipado, mas sempre que uma onda a acertava da maneira certa, ela imaginava o deus-polvo nas profundezas, a auxiliando no caminho.

O sol estava quase se pondo quando avistou uma construção de pedra no horizonte, tão alta que não conseguiria passar despercebida, mesmo pela mais ignorante navegadora. As formas do lugar iam se revelando para ela à medida que chegava mais perto, suas colunas corroídas pelo vento e sal, sustentando um domo de pedra circular; até o domo, um longo caminho também de pedras quebradas, escurecidas pelo tempo, esverdeadas pelo musgo e algas que cresciam em suas reentrâncias.

Chegando mais perto viu pequenas figuras que entravam e saíam de barquinhos como o seu, e também de barcos maiores, iam até as paredes do domo, se ajoelhavam e voltavam às embarcações. Ela ainda não havia comido e sentia que se aquelas pessoas não se compadecesse dela e lhe desse algo para comer, sua viagem logo teria um fim, talvez naquela mesma ilha.

Às margens do caminho, a quantidade de vasos de barro com aquela mesma inscrição em vermelho ia aumentando, podia agora ver uma profusão deles, alguns em suas cores originais, alguns escurecidos, esverdeados, quebrados, flutuando aos pedaços, meio afundados; assim como alguns barcos e jangadas largadas ao longo do lugar, marcando a passagem do tempo.

Sabia agora se tratar de algum tipo de templo e sentiu o estômago embrulhar, de fome e ânsia de começar a cumprir a promessa que havia feito. Não esperava que pudesse ter que começar tão logo, mas sentia-se satisfeita com o horizonte de logo ter seu filho de volta aos seus braços.

Puxou seu barquinho um pouco para a terra, o suficiente para que não saísse flutuando, e virou-se para a entrada do templo, ao longe. O que viu, na verdade, foi uma dezena de rostos virando tão rapidamente em sua direção como se não tivessem ossos no pescoço.

Sentiu-se diminuindo até o tamanho de uma formiga, mas não deixou que os olhares espantados, incomodados, inconformados, enraivecidos a parassem de seus lentos passos determinados até a outra extremidade do templo. “Suja" ouviu sussurrarem enquanto passava; mais adiante outro homem cuspiu no chão quase acertando seus pés.

“O que ela acha que faz aqui!?”, “Quem ela pensa que é?”. Das crianças mais velhas via cabeças balançando e das menores, grandes olhos aflitos olhando para todos os lados. Sentiu que a cada passo certo que dava, o burburinho em volta de si aumentava, e logo a tensão em volta de si era tão densa e opressora que sentia seu peito pesado, sendo aberto por um buraco negro de angústia, incerteza e antecipação, mas não medo.

Andava olhando para baixo quando viu um par de pés descalços e sujos parar em sua frente, impedindo a passagem. Levantou o rosto muito acima de si, para um homem que a encarava com desdém.

“Você não é bem vinda”, disse ele, seguido de um “blasfêmia” gritado da multidão que agora se aglomerava em torno deles. “Você mancha o templo do nosso deus com seus pés, com o sangue do seu gênero. Aqui não é lugar para você; você pertence à terra.”, cada palavra cuspida do homem era seguida de uma salva de gritos incentivadores dos espectadores.

Mal começara a dizer que chegava em busca de filho e teve sua fala interrompida por um tapa que a desequilibrou. “Você blasfema com sua presença e com suas palavras”, e com um gesto inflamou a multidão contra ela. Não teve tempo de reagir aos socos e pontapés que se seguiram, e nem saberia como, apenas mantendo as mãos cobrindo o rosto que já havia sido atingido. A cada chute sentia seu corpo ficando menor, compactado, empurrado para dentro de si mesmo. Sentia ânsia e a violência da dor que antecede o vômito, mas há tanto tempo não comia que de sua boca só saiu sangue, se misturando ao suor dos agressores.

Tão de repente quanto começaram, assim também os socos pararam, e seu corpo foi erguido pelo que pareciam dois homens, só para ser jogada num chão diferente daqueles de pedra do templo. Apesar de manter os olhos fechados, percebia a escuridão em volta de si, o cheiro de peixe e sal, e temperos, o alecrim e o açafrão que dava em sua cozinha.

Abriu os olhos quando sentiu o balanço do mar e viu que estava no porão do que deduziu ser um dos navios maiores daqueles que a espancaram no templo. Seu corpo doía sem que conseguisse identificar uma única origem, ainda assim conseguiu sentar-se apoiada na parede de madeira do barco, um cargueiro, imaginou, como aqueles que chegavam às praias de sua ilha, dos homens maltratados pelo sol e rabugentos que lhe vendiam o peixe do almoço. Respirar era difícil, provavelmente haviam quebrado alguma costela; e o gosto de ferro na boca a deixava enjoada novamente. Seus olhos, porém, perscrutavam, atentos, cada barril, cada pequena janela redonda, cada maço de especiarias pendurado no teto baixo.

Teve um sobressalto ao perceber, na penumbra da porta agora aberta em uma fresta, uma sombra pequena. Sentiu que olhava diretamente para ela, mas não com raiva ou ameaça, e sim com curiosidade. Aquela troca de olhares resultou num sutil movimento da sombra para revelar um pézinho sujo que chutou uma maçã para ela. Uma criança. Ela devorou a maçã até as sementes e virou-se para a sombra infantil com olhar esperançoso por mais, até perceber que ela não estava mais lá.

Fechou os olhos, sentindo que a maçã apenas acordara a fome adormecida pelos socos. Quando abriu os olhos novamente, já era noite; ao seu lado tateou o que pareceu um prato e um cantil. Comeu e bebeu como se fosse a primeira refeição de um preso em liberdade. “Você é uma mulher”, disse uma voz muito mais infantil do que antecipara, do dono daquele pezinho, cujo rosto era encoberto pelas sombras.

Ela agradeceu a comida e bebida. “Mulher não pode ir no templo, papai me disse. Ele disse que você é suja”. Imaginou se o pai daquele pequeno não seria o homem que incitara a multidão contra ela. Perguntou-lhe sua idade, ao que a criança respondeu, com orgulho, que havia acabado de fazer seis anos e que agora podia acompanhar e ajudar a família no mar. Seu estômago se contorceu imaginando o sorriso que acompanhava aquelas palavras, tão feliz com o perigo no qual era colocado.

Contou-lhe então sobre seu filho, apenas pouco tempo mais velho, contou-lhe sobre o deus que encontrara e de sua busca. A crina perguntava por mais, ávida pelo que, para ela, era apenas uma grande aventura como as das reuniões em volta do fogo.

Sua narração, no entanto, foi interrompida por um solavanco que só poderia indicar a chegada ao destino. Ela não se surpreendeu quando o pequeno saiu correndo para o convés, logo voltando acompanhado de um homem atarracado e sujo, que rosnou algo para ela e a arrastou para fora, sob a brisa gelada da madrugada.

A PRISÃO

A cidade dormia num silêncio assustador, nenhuma mulher atarefada com o dia que, pela escuridão em volta de si, certamente raiaria em breve. Nenhum homem nas praias ao lado do cais. O único som vinha das caixas sendo descarregadas em terra e das correntes e grilhões que a prendiam batendo uns nos outros

Não sabia para onde seria levada, mas sabia que aquele lugar, assim como em seu morro, deveria ter um lugar para o qual levavam as mulheres que desviavam das regras, as transgressoras. Era para lá que esperava ser levada, sem julgamento ou possibilidade de redenção, pois havia feito muito mais do que que muitas que conhecia, havia ido longe demais.

A cidade parecia muito maior do que a sua pequena ilha. Da rua principal, de terra batida, enveredaram por uma série de travessas até chegar numa construção de pedra e grades, da qual se conseguia ouvir os gritos de longe. Havia um pátio interno rodeado de celas. Suas correntes foram retiradas e o portão fechado, no lugar dos gritos, ela sentiu olhos curiosos que a analisavam.

Não tinha tempo para aquilo. Correu para as grades gritando que não podiam prendê-la, ela só queria seu filho de volta, não iria pisar no mar novamente, ela prometia, mas que por favor fossem atrás dele; ele era apenas uma criança, precisava encontrá-lo, ele deveria estar com tanto medo.

“Eles não vão te ouvir”, disse uma dura voz feminina muito próxima. “Não ouviram a mim, a nenhuma de nós. Não vão ouvir uma estrangeira.”

Virando- se, ela viu diversas outras mulheres saindo de cantos escuros que ela imaginou serem celas, encurvadas e com olhos ansiosos.

“Todas nós perdemos alguém, todas nós ousamos mais do que nos foi permitido pelos homens dessa terra. Nem todas ousaram tocar nas águas como você, mas todas fizeram o possível para reaver o que havia sido perdido.”.

Ela perscrutava os rostos daquelas mulheres, sabendo que pareciam muito mais velhos do que realmente eram: envelhecidas pelo cárcere, pela busca e pela dor. Corpos magros e miúdos, cheios de histórias que começaram a compartilhar umas com as outras no círculo que se formava.

Ouviu histórias de mulheres abandonadas, histórias de mães, filhas, amantes, que amavam homens e odiavam homens, que amavam outras mulheres e que se viam como mulheres há tão pouco tempo. Histórias de outras tantas que, assim como ela, buscavam o filho a qualquer custo, mas que haviam sido sempre barradas. Afinal, assim era a vida como conheciam, como sempre havia sido.

Cada hora naquele lugar era uma hora mais longe de seu filho. Ela andava de um lado a outro, entrando e saindo das celas, olhando através das barras do portão para as pessoas que baixavam a cabeça ao passar ou de seu cubículo para o mar revolto logo abaixo. Das conversas sorrateiras com as outras prisioneiras, descobriu que da cela que sentia soprar um vento gélido e cortante todas as noites, era também para onde levavam as que exigiam demais, as que desacatavam, pois havia blocos soltos na parede que dava para o mar, congelando quem passasse a noite.

Segundo o que diziam, aquela cela era a prisão perfeita: um vislumbre de liberdade, sem que nunca tivessem coragem de passar por cima dos deuses e se jogar ribanceira abaixo. Nenhuma havia sequer ousado pensar na possibilidade, diziam enquanto olhavam ao redor à procura dos guardas e seus ouvidos atentos.

Ao nascer do sol, decidiu que não havia mais tempo a perder naquele lugar. Aproximou-se das grades do portão principal e a plenos pulmões gritou sobre quão impuros e sujos eram aqueles que haviam trancado e tentado silenciar aquelas que só pedem por justiça, e rogou para que os deuses arrastassem suas embarcações mar adentro.

O efeito do que dissera foi imediato, congelando o andar dos que passavam e agitando os guardas, que a arrastaram pelo pátio até a cela, onde deixou-se espancar e ser jogada no chão gelado, úmido e salgado, fazendo arder suas feridas recentes. Ao longe via suas companheiras de prisão com as mãos tapando os ouvidos, de olhos apertados, encolhidas nos cantos de suas celas.

No meio da noite, enquanto se preparava para executar seu plano, viu, do outro lado do pátio, um grupo que se reunia ao redor de uma fogueira, coladas umas às outras e enroladas em suas cobertas surradas pelo uso. Algumas olhando fixamente para o fogo, outras deixando o olhar vagar pelos entornos da prisão, como se prontas para o que quer que se seguisse.

Levantou-se da palha da cama e se concentrou na parede à sua frente. Começou a puxar e empurrar os blocos de pedra ao redor do buraco, tentando tirá-las do lugar. Com um esforço muito menor do que havia antecipado, elas começaram a se mexer, bem devagarinho no início, e então a ponto de serem empurradas para o lado de fora, se espatifando no morro abaixo e no mar adiante.

Em pouco tempo o buraco já estava grande o suficiente para que pudesse passar, mesmo que com alguma dificuldade. Deu uma última olhada para o abismo e para o escuro que a esperava abaixo, e pulou. O último som antes do assovio do vento em seus ouvidos foram os gritos das mulheres que se reuniam ao longe.

AS MULHERES GIGANTES

Mais uma vez engolida por aquilo que nunca ousara tocar, o que diria sua mãe, sua avó, se a vissem no mar daquele jeito, explorando, adentrando, desafiando. Elas que dedicaram suas vidas àquela pequena montanha de terra, concreto e areia; dedicado suas vidas a perder maridos e filhos, e fazer novas crias para que saíssem pelo mundo e novas filhas para calçar os chinelos e vestir o avental.

Sua mente agitada enquanto despencava do penhasco abaixo, orando para que os deuses do mar não lhe guardassem pedras afiadas no fundo. Morrer nas pedras era melhor do que morrer aprisionada por aqueles que apenas a alimentavam porque não queriam dormir com o nome "assassinos" rondando seus sonhos. Mas ainda assim, era morrer.

Quando acordou já era dia, via o sol brilhando através das pálpebras que abria com dificuldade cheios de sal e cansaço. Assustou-se ao notar que estava viva e que a luz e o calor eram do mesmo sol que a iluminou quando saiu da ilha, o que parecia uma vida no passado. Sentiu a pedra dura e escorregadia embaixo de si, cheia de musgo; seu corpo doía a cada movimento, ainda assim forçou-se a se sentar, questionando se o deus polvo realmente a acompanhava e movimentava as marés a seu favor.